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Anima Loci - Um deus em seu jardim


Quando criança, minha família tinha uma fazenda na qual passávamos nossos finais de semana. Eu adorava. Saíamos da balburdia tóxica da cidade por volta de meio dia na sexta-feira e retornávamos somente no domingo a tarde. Era incrível perceber a mudança da paisagem e por conseguinte de toda a vida e energia ao meu redor.

Sempre fui uma criança estranha. Cheia de imaginação, que via coisas que ninguém mais via e conversava com tudo – pedra, planta, bicho, água, vento, fogo, sol, lua, estrelas. Lembro de minha mãe me chamar de “misticozinho”.

No fundo de nossa fazenda havia uma floresta – imensa, imponente e misteriosa. Os tempos eram outros e me era permitido brincar despreocupadamente nela. Lembro de brincar com um galho caído que, em minha mão, era uma varinha mágica, tornando-me o bruxo da floresta. Aprendia feitiços balbuciados por riachos e fadas, cantados pelo vento nos galhos das árvores. Cavava raízes para descobrir seus aromas inebriantes, comia frutas silvestres, guardava pedras aparentemente comuns que se tornavam poderosos talismãs. Os céus eram pintados de rosa, laranja e lavanda e eu previa o que aconteceria. As sombras das árvores ficavam mais longas e mais escuras, os sons dos animais agora mais suaves do que o vento. Eu sabia que era hora de trocar minha persona bruxo e voltar para a fazenda. O bruxo ficava na floresta, mas eu trazia a magia comigo.

Com o passar dos anos, as inocentes brincadeiras de magia imaginária que observava na infância ajudaram a forjar as bases da minha prática de bruxaria. Todos os dias caminho perto de um bosque nas redondezas e sempre que posso, vou a cachoeiras e florestas e campos para recarregar meu espírito e prestar homenagem aos seres que lá habitam. Nos limites de tais lugares, sussurro palavras de veneração e gratidão, alertando aos deuses destes lugares da minha presença, assegurando assim a minha estadia. Faço libações de água e saliva, pão, bolo, vinho e tabaco em agradecimento. Escuto o ranger das árvores, os riachos correndo, as canções dos pássaros, sinto os aromas que dançam pelos ventos. O “misticozinho” da juventude tornou-se um bruxo de verdade. As vozes encantadoras na floresta que eu escutava e com quem brincava quando criança, hoje sei que pertencem ao Genius Loci / Anima Loci, ou Espírito do Lugar (Genii Loci, plural).

Todo lugar tem um espírito. Das mais selvagens e remotas florestas e campos em repouso até o jardim bem cuidado e a paisagem da cidade. Nós extraímos nosso alimento não apenas da comida (que, idealmente, deveria ter vindo da própria Terra), mas também das correntes espirituais que existem no mundo.

Culturas em todo o mundo possuem deuses e espíritos locais habitando áreas específicas. Os antigos romanos frequentemente viam o Genius Loci ou o poder da Terra como uma serpente. As cidades-estados gregas, como Atenas e as terras ao redor dos Estados estavam sob a proteção e patrocínio do deus local. A veneração ao deus / espírito local vai desde a celebração chinesa do Cheng Huang até mesmo aos israelitas monoteístas, apesar das objeções de seus sacerdotes, em que prestavam homenagem aos deuses das terras em que se encontravam, tais como os deuses cananeus Baal e Asherah. Vemos isso em 2 Reis 17: 24-34 onde os assírios, sendo atormentados por leões devoradores de homens, enviaram seus sacerdotes para aprender os costumes do deus daquela terra e terminaram com uma religião sincrética que adorava a Yahweh ao lado dos deuses da tradição local.

As tradições xintoístas do Japão, sendo em seu cerne animista, erigiram portões de Torii que representam a presença de um Deus (chamado Kami) em um cenário natural. Para o xintoísmo, os Kami existem dentro da natureza e não acima dela. Para entender melhor como são esses Espíritos do Lugar, recorro a uma citação do estudioso japonês do período Edo, Motoori Norinaga, que diz que os Kami são: “alguma coisa ou fenômeno que produz as emoções do medo e da admiração, sem distinção entre o bem e o mal.”

Embora essa definição seja bastante ampla, podemos supor que os Espíritos do Lugar têm uma influência direta em nossos sentimentos e sensações quando estamos em contato direto com eles. Alguma vez você já viu uma tempestade, um pôr-do-sol, uma cadeia montanhosa ou uma costa oceânica e sentiu uma forte reação emocional? Se sim, você sentiu o poder do Genius Loci. O sentimento é apenas o começo. Abrir e pavimentar o caminho para a comunicação e a construção de um relacionamento através do amor e da ajuda mútua é o próximo passo.

Se possível, assista ao filme de 2009 “The Secret of Kells” e preste atenção na personagem Aisling. Este filme é bastante interessante e justo na representação do “povo das fadas”. Aisling é uma garota mágica e misteriosa que governa uma vasta e escura floresta fora de Kells. Ela possui lobos por aliados, é capaz de voar e mudar de forma. No começo, ela quer que os intrusos deixem sua floresta, mas depois de perceber que não há ameaça para sua terra, ela se torna uma grande ajuda. Aisling (que em gaélico significa sonho, visão, musa), é o espírito residente desta terra e fazer amizade com ela leva a personagem principal até o objeto exato que ele estava procurando, realizando assim uma parte de sua busca. Os Espíritos da Terra geralmente sabem mais do que nós, ou têm conhecimento que podemos obter com a segunda visão. É um saber que não vem das palavras de um livro.

Sei que é importante estabelecer uma relação com uma área selvagem longe das cidades e das fábricas, pois as lições ensinadas são velhas e poderosas. No entanto, morar em uma cidade ou subúrbio não impede que alguém experimente os Espíritos do Lugar. Vida é vida, não importa onde ela cresça, mas esta pode assumir diferentes formas dependendo da sua localização (e dos espíritos) que promovem seu crescimento. A terra ainda reside abaixo do concreto e do asfalto. As raízes das árvores plantadas nos parques da cidade são capazes de encontrar sua sustentação de alguma forma. Logo, também nós que moramos na pólis. Um bom guia para estabelecer um relacionamento com o Genius Loci da sua própria cidade é o livro escrito por Christopher Penczack intitulado “City Magick: Urban rages, spells, and shamanism.” Aconselho não somente a leitura deste livro, mas de toda a obra dele.

Estamos todos conscientes do impacto que a raça humana tem sobre a Terra. Ela está sendo drenada de recursos que levaram milhares de anos para serem criados. Suas paisagens sagradas estão sendo devastadas e ambientes inteiros que sustentam vastas quantidades de vida são eliminados em semanas. Como pessoas de mentalidade mágica, devemos perceber que esses impactos também podem vir da nossa prática. Desde a antiguidade utilizamos os poderes das pedras e minerais para ajudar, curar e punir. Extraímos muitos cristais e metais das profundezas da Terra, e muitas das técnicas usadas para mineração não são ecologicamente respeitosas. Uma pedra de rio polida pelos elementos pode ser tão poderosa quanto um quartzo entalhado e multifacetado. Esteja ciente do ambiente em que você usa para traçar seus círculos e realiza suas cerimônias. Vá para uma área com o intuito de deixá-la mais limpa de que quando você chegou. Cure a Terra com rituais e orações, mas também coloque sua energia em ações que limpem o lixo jogado em florestas e rios, ajudando a proteger nossos recursos naturais. Se você deseja trabalhar em harmonia com a sua terra, você deve se esforçar para protegê-la.

Um dos meus conselhos favoritos para se começar a trabalhar com os Espíritos do Lugar vem do grimório “Viridarium Umbris: The Pleasure-Garden of Shadow” de David Shulke. O Viridarium goteja belamente um discurso poético, raramente encontrado na maioria dos livros sobre feitiçaria e magia desde os anos 1800. De todos os livros sobre o tema da Green Art, eu recomendo o Viridarium para guiá-lo. Na página 153 lemos:

“Ao bater na Porta da Terra, quatro são as fontes de poder. A primeira é a própria Terra - suas rochas, água, terra e ar. A segunda são os espíritos de todos os habitantes das plantas e animais. A terceira é a Morte e sua sabedoria acumulada. A quarta é o povo vivo da terra e sua sabedoria, conhecida por folclore e costumes. Onde os devotos estão reunidos em nome desses quatro deuses, as ninfas e as hostes dos povos da floresta sairão em libertação ”.

Livre tradução e adaptação

Em minha prática pessoal, interpreto essa passagem da seguinte forma:

  1. Para entrar em contato com os Espíritos da Terra, devo compreender que o abrangente Genius Loci é composto de muitas partes. Usando um quebra-cabeça, por exemplo, cada peça pode ser vista como um espírito individual com uma forma e uma imagem em si.

  2. Montando o quebra-cabeça, podemos começar a ver que cada um dos espíritos é apenas um órgão no corpo maior do Genii Loci.

  3. O Espírito começa, em primeiro lugar, a se manifestar a partir do próprio solo e, em seguida, através das criaturas da Terra - as árvores e plantas, os pássaros e as feras.

  4. Os mortos que encontraram o seu lugar de descanso final naquela solo compreendem a terceira parte deste Espírito, e a quarta parte é a observação dos contos, costumes, histórias das pessoas que ali habitam.

Compreendo que, em nosso trabalho para contatar o Genii Loci, somos uma chave em nós mesmos. Em virtude de estarmos aqui, somos também uma faceta do Espírito do Lugar!

Então, mergulhe conscientemente em você mesmo e no ambiente ao seu redor. Com cada um dos seus sentidos, varra a paisagem à sua volta. Que sons emitem as coisas vivas ao seu redor? O que você vê se movendo, crescendo, ou mesmo ficando parado? Quais aromas e sabores você reconhece? O que cavalga o ar que interage com suas sensações físicas? Que emoções e sentimentos surgem no ambiente? Há algum símbolo natural que atraia sua atenção pedindo para ser transformado em talismã e símbolo de sua arte?

Experimente esta prática sempre que sair da sua casa, do seu local de trabalho ou de qualquer outro edifício. Caminhe pela sua vizinhança, o centro de sua cidade, seu parque ou bosque favorito e pratique a expansão de sua consciência. Você começará a comungar com os Espíritos da Terra em que reside e eles com você.

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